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A crise da crítica foi substituída pela crise do mundo. No primeiro capítulo da obra de Paul de Man, Blindness and Insight – cujo título tomei emprestado para este texto –, o teórico da literatura defende que “toda a crítica autêntica se produz em forma de crise”. Citando a conferência de Mallarmé em Oxford em 1894 (“Enredámo-nos com as regras do verso... On a touché au vers”), de Man aplica as palavras do poeta francês à crítica literária de 1970: “On a touché à la critique... As regras e convenções consolidadas que governavam a disciplina da crítica e faziam dela uma pedra angular da estrutura intelectual foram tão manipuladas e alteradas que o edifício inteiro ameaça ruir.” Mas esta forma de crise, que não afecta necessariamente os enfoques históricos ou filológicos, é desde logo inseparável da crítica: “Falar de uma crise da crítica, é pois, em certa medida, redundante.” 

Quando De Man escrevia, os seus comentários podiam facilmente aplicar-se à disciplina arquitectónica. Depois dos livros de Venturi e Rossi de 1966, a situação intelectual deste campo poderia descrever--se com as mesmas palavras: On a touché à la architecture... As regras e convenções consolidadas foram tão manipuladas e alteradas que o edifício inteiro ameaça ruir.” As regras e convenções eram sem dúvida as da modernidade, adoptada após a Segunda Guerra Mundial como a forma canónica de construir, e esta primeira rejeição pós-moderna seria logo seguida pelas formas instáveis e fracturadas da arquitectura deconstrutivista e pelas construções encurvadas e informes das bolhas e dos vultos desenhados por computador. Hoje, quatro décadas após a crise da modernidade que sacudiu a arquitectura e a crítica, a crise material do mundo – do aquecimento global e do meltdown financeiro às catástrofes humanas e à universalização do terror – coloca em primeiro plano a evidência de que o edifício que ameaça ruir é o próprio planeta. 

Confrontados com a deprimente realidade do colapso da go-
vernação global, a tarefa da arquitectura torna-se muito elementar: colocar alguma ordem no seio da desordem; e a tarefa da crítica acaba por ser ainda mais básica: oferecer apoio e estímulo mais aos projectos que se propõem melhorar o mundo do que às propostas que procuram representar o caos em que está imerso. Expresso des-
ta forma, o trabalho da crítica parece intelectualmente superficial, ou mesmo directamente trivial, mas talvez o nosso tempo histórico reclame a humildade da simplicidade, não só nas nossas vidas, mas também nas nossas análises. A estupidez é uma forma de sabedoria em tempos atribulados, e libertar-se da habitual roupagem de sofisticação intelectual equivale a despir a arquitectura do ornamento superficial, esforçando-se por alcançar a raiz das coisas e reclamando para os arquitectos um papel de serviço que se desvaneceu na liaison non sancta com a celebridade e o glamour. 

Os arquitectos tiveram muito êxito no fornecimento de ícones construídos para as cidades e para os países mas muito menos na hora de enfrentar os desafios de um mundo desgarrado pela dor e pela ansiedade. As figuras intelectuais mais influentes abraçaram uma caricatura do capitalismo quase como a única referência ideológica, e as aspirações utópicas da modernidade praticamente desapareceram num clima de cinismo extremo. A disciplina da arquitectura, durante tanto tempo território de monarcas e magnatas, esbateu os seus laços com o poder durante as primeiras décadas do século xx
e estabeleceu um pacto com a esfera social que situava a vida quotidiana da gente comum no centro da sua atenção, mas, desde então, com a emergência do espectáculo enquanto traço dominante da sociedade contemporânea, este pacto foi-se debilitando. 

A consciência actual da fragilidade das nossas estruturas políticas e económicas – que praticam o culto do espectáculo tão obsceno como obsoleto – pede a renovação, um século depois, do contrato social da arquitectura moderna: uma renovação que não pode ser inocente, já que são muitas as culpas que recaem sobre a arquitectura, e que tão-pouco pode render-se ao cepticismo. É desde logo um caminho difícil, que exige atenção constante, e que, no final, pode não levar a lado nenhum. Mas é o único que oferece uma esperança fugaz, e o único a que parece decente recorrer. Esse é doravante o nosso modesto e estúpido caminho: criar ilhas de ordem num mar de desordem e oferecer guarida face à dor do caos. Italo Calvino descreveu eloquentemente essa senda nas frases finais do seu Cidades Invisíveis de 1972: “Procurar e saber reconhecer quem e o quê, no meio do inferno, não é inferno, é fazê-lo durar, é dar-lhe espaço.”

Se tudo isto soa como uma tentativa dubitativa de dar nova vigência a um humanismo tristemente desgastado é possivelmente porque, como Mark Lilla argumentou, fomos demasiados os que “seguimos um falso messias até ao deserto da desconstrução”, e a reacção intelectual a este extravio tem um carácter de desespero que procura os mais improváveis apoios. Em Les voix du silence de 1951, André Malraux escreveu que “queremos redescobrir o homem em tudo aquilo que ele destrói”, e esta vontade de voltar a descobrir a humanidade na adversidade tem um valor ético que não podemos deixar desaparecer. A crise do mundo reclama que a crítica outorgue voz ao silêncio e que revele ao olhar tanto as cidades invisíveis como as arquitecturas invisíveis.|

 

tradução (do espanhol) de Pedro Sobral Pignatelli


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